Thursday, May 17, 2012

Sorriso Alfaiate (Ficção)

E o Coringa ri. Ri das piadas que não conseguiu prever, especialmente feitas para ele. Sabe que sim. Tem certeza, charme, se delicia. O mundo de palhaços ao qual pertence também pertence a ele, embora não saiba exatamente o que faz ali. É alguém em um novo emprego.

Gosta de se vestir à caráter, de fazer parte do Club Dus Circensis. Colete em volta do pescoço, gravata de seda estampada. Boa pessoa. Abotoaduras de guirlanda chacoalham em seu pulso. Camisa verde combinando com as meias cor-de-abóbora. Classe.

Sorri forçado à corte e costura, não tem escolha. Anda de lado como se bêbado estivesse. Entrando no recinto, enviesa na diagonal como bispo pelas casas pretas do assoalho xadrez. A verdade é que anda em L e passa por cima das outras peças quando lhe convém.

Mudar. O porquê de ter passado maquiagem pela primeira vez. A camada branca serve para esconder quem é; de todos, de si mesmo. Incrivelmente, não sabe disso. Acredita mesmo se encontrar ali. Outros se encontraram e ainda se encontram, de fato e corretamente, mas porque são honestamente assim.

Mas não esse Joker, que nem mesmo piada faz. Maquiado está o seu olhar, o ângulo do qual vê o mundo.

Não faz a menor idéia de como as coisas funcionam. Faria, se alguma vez já tivesse se perguntado as perguntas certas. Know thyself. Conhecer-se? Não há nada de bom para conhecer.

A cada desbotar, a pancake torna sua maldição mais evidente. Cada lágrima que escorre em segredo leva consigo uma porção branca de pasta especial para face, descobrindo o que sempre escondeu: o fardo desse Bufo jamais ter feito alguém sorrir.

Wednesday, April 11, 2012

O Sim e o Não

Sentidos intoxicados revelam tanto
quanto um striptease da alma: muito, mas invisível.
O Não visto é melhor.
Seria melhor ainda se fosse o ideal,
mas é o Não possível que agrada.
A natureza dos atos singelos,
tranquilos pela certeza do Não.
O Não, essa entidade,
que leva o tudo a ser nada a perder.
O Não que deveria ser ruim.
Mas até que ponto, até quando, o Sim é bom?
Até que ele seja desejado.
Até lá, o Não é o Sim desejado.

Thursday, April 05, 2012

Diário de bordo (uma ficção científica, quem diria).

Trafego por diversos universos sem cerimônia, mas com muito respeito. Mundos com suas órbitas particulares se aproximam; diferente de Melancholia e Terra, não colidem; coexistem. Interessantes habitantes aparecem mais ou menos, com importância diretamente proporcional ao tempo de permanência. Toda a cortesia entre os mundos é eventualmente entrecortada por um ou outro (raro) bárbaro. Destes minha nave mantém distância – graças à Nébula Maior por isso.

Piratas de energia são os problemas mais comumente enfrentados. A carga positiva que transporto é alvo constante de tentativas de seqüestro, mas sem sucesso, tranqüilizo. Nota para registro: são personas intrigantes tais saqueadores. Confiam tanto na própria sombra quanto na própria tripulação = zero. Hasteiam suas bandeiras no mais alto mastro para impô-las aos (sub)mundos, provável única forma de auto-destaque. O máximo que conseguem são tripulações reféns e diminuídas, tão logo dissimuladas; eventualmente eclodem motins.

Já minha tripulação, os chamo de Iguais. Não possuímos patentes, nos tratamos pelo mesmo posto. Uns poucos escolhidos, de universos paralelos, e diferentes, mas nenhum melhor ou pior que o outro. Os motivos para estarem a bordo são afinidade, competência e confiança. Cada um possui um departamento, são os melhores no que fazem. Protegem minha retaguarda tanto quanto protejo as suas. A solidão do espaço infinito se extingue tão logo suas presenças são requeridas. Os percalços encontrados por uma nave dessa magnitude se mostram constantes, embora facilmente solucionados quando se pode contar com parceiros dessa competência. Gratidão eterna à minha equipe.

Quanto à solidão no dead space, esta só pode se constatar inevitável. Já afirmada em registros de diários anteriores, o sentimento inerente só pode ser diluído em duas situações: pela já bem falada tripulação e/ou por presenças afetuosas das habitantes de maior importância dos tais universos pelos quais trafego. Tem se mostrado difícil – mas não impossível – tal afeição. Desde que a última integrante deste seleto grupo aportou e abandonou a nave, escolhendo um desses universos adversos - não sua estrela natal, registro. Levou consigo uma parcela da carga positiva que nossa embarcação espacial carrega. Embora tão seguro, o carregamento está sujeito à subtrações, racionalmente remediáveis a médio prazo.

Desde então, esses universos tem me presenteado com companhias importantíssimas, fugazes, intensas e felizes, às quais posso creditar novos observações, vivências extraordinárias e um superávit nos níveis de positividade, adicionada e incorporada à carga transportada pela nossa embarcação. Esse diário se obriga a precisão, portanto deve assinalar que tais mantimentos ainda se encontram subtraídos, se comparados ao acúmulo original de positividade nativa. Porém, se torna imprescindível a referência ao gráfico anexo; este registra uma forte tendência de alta no que diz respeito ao precioso ítem positivo que torna possível para essa nave mãe o simples ato de decolar.

Ademais, eventos que não merecem registro.

De: Controle da Nave
Para: Lar Doce Lar

Over.

Wednesday, July 06, 2011

O primeiro fim. (Ficção)

Abraçou-a com cuidado para não quebrar seu coração. Tarde demais.

‘Então, é que... tá complicado’ – clichê.

Dois anos e (quase) cinco meses parecem muito mais tempo para jovens de vinte e poucos. Aliás, ela mal tinha completado vinte, dezoito quando se conheceram.

‘Não tem nada complicado. Você é que não gosta mais de mim’ – também clichê. Era verdade, ela já sabia antes mesmo de pronunciar essa frase. Dito com voz embargada, soluço no meio da frase, tomou ares de melodrama.

Ele era perfeito para ela.
Estiloso e bonito estudante de cinema com olhos castanhos e barba mal-feita que passou um tempo na Europa.
O mundo passou a girar em torno dele. Aquele mundo novo onde só existiam as coisas interessantes que ele mostrava, aquela literatura desbocada, aqueles filmes com imagens fortes e planos-sequência infinitos e roteiros geniais que ela entendia mas ainda não sabia direito porque eram geniais. Tudo era tão... cheio.

‘Não é nada disso...’ – Ele não ia admitir. Claro que não. – ‘Eu gosto de você... sim.’

Ele só pensava em sair da cafeteria. O lugar diminuía, as pessoas só entravam, ocupando o ambiente com auto-confiança e nariz empinado. Ele queria ser uma daquelas pessoas e a odiou por estar naquela situação. E agora era obrigado a concretizar o óbvio, terminava o que terminado já estava desde o início. Gostara dela ao se conhecerem, claro, mas gostava mesmo era da segurança. E o corpo dela... Lindos aqueles... Aliás, era toda linda. E o melhor, nunca iria magoá-lo, ele estava seguro. Boas lembranças. Terminar... já não era tão certo assim. Uma insegurança foi substituindo o desamor e voltar atrás já era uma opção. Era o motivo errado, mas um motivo, né? Estava tendo uma recaída, precisava sair logo dali. Por isso tinha escolhido um lugar público, afinal.

‘Você quer rachar a conta ou...’

Um olhar lento, vermelho-lágrima, de tão triste se tornava inexpressivo, mirou o rosto dele.
Ele se afastou, tocando o encosto da cadeira. Sentiu medo de sua criatura, medo, da mágoa, que tinha criado.

‘Eu pago a minha parte. Pode ir embora’.

E foi. Desconcertado, não sabia porquê. Descobriria mais tarde que tinha sido por causa da maturidade que ela mostrou, maturidade que ele não soube reconhecer na hora porque não possuía. Dali pra frente ela seria uma mulher. Se encontrariam várias vezes durante a vida, a maioria casualmente, nenhuma delas por amor. Uma ou duas vezes por sexo, verdade, mas nenhuma por amor ou amizade sincera. Tentou reconquistá-la por inveja, mas ele ainda era um menino bobo com seus filmes superestimados e ela nunca mais serviria de escudo sentimental para outro menino bobo daqueles.

Wednesday, May 25, 2011

Relato de um Nerd (Ficção)

_Pai, mãe: Eu sou um nerd.
Foi assim que falei, de supetão. Um choque tremendo, meu pai virando a mão no meu pé-do-ouvido, minha mãe chorando, dizendo que sonhava me ver casado e não forever alone, dizendo que queria ter netos... Pelo menos era o que eu esperava que acontecesse. Mas não.

_Nós já sabíamos, meu filho. Hoje em dia está tudo na TV. Quando você passou dos 15 anos e continuou comprando ‘aquelas coisas’ – aquelas coisas é como eles chamam as minhas HQs – notamos que tinha algo diferente em você. Mas você sabe que sempre te amaremos, não importa o que aconteça, e se você é assim, nós vamos te apoiar. Mesmo se você preferir levar uma toalha a um canivete suíço quando for acampar.

Meu Deus, em que mundo nós estamos?

Mas logicamente eles estavam certos. Acabou-se o tempo que ninguém entendia quando alguém era chamado de Jabba the Hutt. Agora as pessoas riem disso! No colégio eu tinha 2 amigos, éramos os únicos nerds. Passávamos o dia conversando sobre Star Wars ser melhor que Star Trek, sobre o Bruce Wayne estar numa cadeira de rodas - na época estava - e o Superman ter ressuscitado sendo parido de um robô gigante que atravessou um oceano andando pelo fundo do mar enquanto gerava ele na barriga. Ok, era um tanque...

Bom, um desses amigos era o já citado Jabba. Uma vez veio um playboy e perguntou pra ele assim:

"Jabba, seu nome é diferente né? Sua família é estrangeira?"

"É! De outra galáxia!" Ele respondeu. Por Odin, tinha gente mesmo que acreditava que esse era o nome dele???

Ser nerd é o novo "alternativo". Posso chamar esse neo-modismo de Nerd Chic? O Google me disse que já chamam. “Eu era nerd” vai ser o comentário das patricinhas do futuro. E elas vão continuar desprezando os nerds de alma, que sempre foram nerds e que serão nerds até o fim da vida, sendo eles milionários no ramo da informática ou juntando trocados para comprar o encadernado do Marvels 50º Aniversário Ultimate Big Plus Motherfucking Edition com desenhos extras do Alex Ross.

Nota mental: apagar a parte sobre os milionários. Eles tem chance.

Mas eu não me importo com elas. É muito melhor conversar sobre filmes do que sobre roupas. Shopping é aquele lugar onde tem livrarias, cinemas e outras lojas, certo?
Prefiro as garotas inteligentes, exatamente como a minha namorada. E, pelo visto, não ficarei forever alone como minha mãe esperava - não só ela. Esses malditos clichês, nos quadrinhos, nos filmes, na vida, na TNT...

Bem, tenho que ir. Terminar de guardar minhas novas HQs em saquinhos, sabe como é.
Vida longa e próspera. _\\//

E feliz dia do #orgulhonerd

Monday, February 01, 2010

Dia Sim, Dia Não (Ficção)

A paisagem campestre refletia uma calma tremendamente inquieta. As árvores eram ladeadas por algumas parentes menores e algumas primas mais distantes de espécies aleatórias, cujas folhas, dedilhadas pelo vento, amplificavam o mais pesado dos rock’n’rolls, inaudível a ouvido nu. O homem observava (e ouvia) tudo isso de lugar algum, quase não agüentando o som, mas estudando o audiovisual deveras incomum para qualquer lugar.
À música pesada foi adicionado um solo de trompete, no estilo frenético de Miles Davis. Estranhamente pareceu fazer parte do mesmo arranjo, mas rapidamente a base pesada utilizou-se de um fade out para entregar o som ambiente ao solo. O rock’n’roll se tornara ultrapassado.
O trompete continuava lá, louco e cadencial, mas não era tocado pelo vento - o que seria mais lógico, se tratando de um instrumento de sopro. A cena já era outra. Lembrava um quarto ou uma sala sem mobílias, apenas uma cadeira onde o homem agora estava sentado. As paredes eram pintadas com uma névoa cinza embaçada, transformando o lugar num interior provavelmente infinito e labiríntico, acaso fosse explorado. No meio desse quarto/sala, um rosto familiar com um sorriso fabuloso tomou forma, em close-up. Ganhou as feições femininas tão íntimas ao homem que observava. Ouviu a mulher dizer coisas amorosas. Ouviu ela sugerir um plano improvável para tudo se resolver. Talvez tudo se resolvesse mesmo, se a mulher não tivesse desaparecido e o abandonado ao som do trompete. Ou melhor, agora era um saxofone, leve e apaziguador, quase romântico, cujas notas desenhavam um futuro melhor.
Um maldito contrabaixo arruinou essa paz momentânea. Nada contra contrabaixos, ou contra baixos, o homem tinha. Mas aquele era o perfeito som do suspense, do incerto. Entrou de sola, solando sobre o tranqüilo sax e quebrando a harmonia, exigindo o tom do momento. O rosto dela reapareceu, agora mais definido e mais amoroso, munido de um corpo explêndido, como sempre fora, e o beijou. O background já não tinha névoas ou árvores-guitarra, era um misto de alvorecer e crepúsculo. Não se sabia bem àquela hora, era preciso esperar e ver se escureceria ou se clarearia. O sax tranqüilo e o contrabaixo feroz digladiavam enquanto o homem inquiria a mulher sobre o plano. Tinha uma falha decisiva: o outro homem. Aquele sem nome, que não teria coragem de meter a cara nesse sonho nem que fosse uma cadeia infinita de pesadelos costurados.
Mas o sax ganhou a discussão com o contrabaixo. A mulher sussurrou no ouvido do homem. Sentenciou que tudo terminaria bem, que ele era presente e o outro era passado; ultrapassado, como o rock’n’roll pesado.
E o alvorecer se definiu. O sax, definitivo e atemporal, solou o fim do sonho. O homem abriu os olhos e viu a mulher, que ainda dormia, deitada ao seu lado.




P.S. Valeu a leitura, agradeço.

Thursday, December 10, 2009

Felicidade (não toda, mas alguma)

   Uma obra de arte. Um caso desconhecido.
   Pequenos segundos que tiram o ostracismo.
   Um olhar eterno. O tempo para.
   O arrepio provocado pela lembrança.
   A observação das criações humanas,
   ilustradas de bens materiais.
   A arquitetura do monumento.
   O desenho que musica o momento;
   A música que desenha o intento.
   O respeito contido no silêncio,
   a felicidade do consenso.
   O dia compartilhado,
   o discurso concordado.
   Beijos, abraços, o toque em si.
   O orgasmo ao mesmo tempo.
   A descoberta que o amor ainda existe.
   O gol do goleiro, a defesa do artilheiro.
   O gancho do armador, o toco do pivô.
   A premiação.
   A sutileza da história, as entrelinhas lidas.
   O cansaço da corrida.
   A vitória da vítima, a volta por cima.
   O sono. O sonho. O samba.
   A ajuda do amigo na hora certa.
   O certo escrito por linhas tortas.
   A comida bem feita.
   O presente para quem se gosta.
   As palavras que a primeira letra de cada frase forma.
   Decifrar um enigma.
   O conhecimento.
   Felicidade.

Para conseguir respirar.

Não consigo respirar.
Há corvos por todo o lugar.
O bater de suas asas no teto batucam o som do desespero.
As paredes se fecham no meu estômago.
Meus pulmões.
Névoa cinza capitalizada que me rouba horas de vida;
põe na conta ou cobra da morte.
Não que eu me importe.
Deitar, ficar em pé, nada disso é opção.
Nada disso.
Filmes, livros, músicas; amortecem mas não esquecem.
Lembram.
Fractais formam formas factuais.
Lembranças?


Como respirar sem gás carbônico?
Como chorar sem sangue?
O maior dos planetas possui a maior das luas em um sistema de duas estrelas.
Um império de sujeira com seus súditos leais que povoam um universo de massa escura.
Corpos rochosos que não se tornaram planetas.
Crianças brincam de adulto a toda hora.
O sonho nem ao sono conforta. O travesseiro, talvez.
O horror.
O horror da hipocrisia que leva o civilizado a civilizar o bárbaro.
Pesco palavras da boca de ventríloquos e alimento meu surrealismo.
Para esquecer...
arranco fumaça de vidro,
arranco areia de brasa,
para esquecer o que se passa.
Para conseguir respirar...


...respirar uma palavra.

Tuesday, December 01, 2009

A História da Minha Vida (Ficção)

Eu nasci num cubículo funcional da nossa nação, na capital, criado por um goleiro e sua trave de sustentação pessoal; heróis sobreviventes de um passado atual.
Fui Superman com capa de toalha, Rambo com metralhadora de plástico, 007 descalso, sem terno na rua. Me equilibrei sobre duas rodas com a ajuda do meu pai, que me soltou sem avisar, seguro da capacidade de me guiar.
Era um homem charmoso. Eu herdei muito dele.Tinha caráter: nunca descontou em ninguém um dia ruim. Minha mãe exalava um perfume de felicidade, incompreensível que me era. Elegante que só ela. Se escondia sozinha no closet, numa espécie de ritual; éramos obrigados a nos afastar. Magia: os truques - mistério, só nos era permitido o prestige.

Fugimos de casa aos treze, todos os três, juntos. Outralguém se apossara. Queríamos o sol, escolhemos onde ele nasce primeiro. The house of the rising sun, meu novo lar.
Fui apresentado formalmente à Solidão. Mal sabia, àquela época, que seríamos parceiros inseparáveis. Um longo período de contato me fez conhecê-la bem, consequentemente, conhecer a mim também. Isso nos afastou.

Num pentágono, formado por pessoas de todos os lados, me encaixei. Éramos 5: dois casais mais um amigo, para o que der e vier. Me apaixonei pela primeira vez. O primeiro verão da minha vida acabou no carnaval - ela se foi - o pentágono ficou com 4 lados e se desfez.
Minha amiga, a Solidão, voltou. Nunca mais a mesma pessoa. Nem eu nem ela.

Ainda no colégio - me apaixonei pela mais linda ave de rapina, que levou minha carne, sangue e coração. Só deixou o esqueleto.
Mas também me presenteou. Deu luz à pedra mais preciosa que eu poderia conhecer - que me acompanha até hoje.

Minha velha amiga veio de encontro ao esqueleto. Mais forte do que nunca, foi amiga de verdade dessa vez. Me ajudou a recompor minha carne, meu sangue, meu coração, cobrando um preço caro que paguei com desgosto. Mas foi bem pago, tudo ficou consertado. Bem, o coração ficou danificado por um tempo, até que eu me apaixonei de novo.
Dessa vez foi uma garça, cheia de graça, voava leve como papel. Até que descobri sua alma, pesada feito chumbo. A Solidão não foi nem tão longe. Voltou reforçada, acumulada por anos a fio. Decidi que era hora de romper com ela.

A Solidão, por mais acompanhado que podia estar, se disfarça de rostos e corpos distintos. Nunca consegui me separar dela de vez, não obstante o quanto tentei, o quanto conheci, o quanto vivi nesse tempo. Era inevitáel. Então, tinha de reatar com a Solidão, na sua expressão máxima de realidade.

Nos demos bem durante um tempo. Estávamos acostumados um ao outro como um velho casal. Nem ela me dava o que eu precisava, nem me cobrava o que pagasse. Um relacionamento simbiótico, sereno, calmo. Me dava forças, a desgraçada, me ensinou mais ainda sobre mim.
Até que, involuntariamente, me apaixonei (de novo). Não pela solidão.

Aliás, dessa vez não foi uma paixão, foi maior que isso. Não foi uma ave, foi a própria natureza, com todo o seu explendor. Não se pode viver sem a natureza. Não era a Solidão desfarçada, era o meu habitat sentimental, minha alma gêmea. Minha fauna e flora, os meridianos e os trópicos do meu mundo. Era meu fuso horário. Minha camada de ozônio. Muito me ensinou, muito aprendeu. A Mulher. Foi minha nova melhor amiga. Mas também minha arqui-inimiga. Aí estava: o problema.

Minha velha melhor amiga, a Solidão, já tinha deixado de ser minha inimiga há muito tempo. E agora ela voltou. Com toda a força que pode me dar, com todo o tormento que vai me ensinar a superar. Com todas as mudanças que vai trazer, com todos os rostos dos quais vai se desfarçar.

Será?


















Monday, November 17, 2008

Sonho s.m.: Personificação paradisíaca do nada.

Seu destino no meu controle,
e que canalha me torno eu.
Te tomar, me alimentar, te beber dormindo,
te almoçar às quatro da tarde de domingo,
esquecer o sono de tarde da noite,
ignorar o Flamengo e o Fantástico.

Meus lábios passeando por aí,
avançando novos caminhos.
Meus dedos te beijando onde
olhos alheios até já deitaram,
mas nunca sequer chegaram
a um palmo de ouvir.

A noite virá a ruir,
e no limbo,
esse sonho deixará de existir.

Egoísta, te mantenho anônima.

Saturday, August 23, 2008

Mais Arte (Ficção)

Enconstados de soslaio numa parede, estamos sozinhos em meio a uma multidão que vai e vem. Não sei como a conversa começa. Você me pergunta sobre algo marcante em você, como se fosse um defeito. Pergunto, ironicamente, se queres sinceridade.

"Sim, ceridade".

Seus olhos me olham no olho. Meus olhos te olham na boca. Ela forma sons que ecoam palavras sobre coisas da vida, do seu dia-a-dia, na sua noite-a-noite. Eu não pergunto nada, apenas comento suas afirmações. Noto nossas afinidades, comento elas também.

Pequenas aflições você me confidencia. Dessas aflições, eu compartilho. Cada um na sua maneira, claro. Seus dias não querem terminar, minhas noites também não. Precisamos relaxar. Cada um na sua maneira, claro.

Mas o que você me perguntou, querida, não é defeito. Já pequei pelo excesso, hoje peco pela ausência. Vice-versa, é o seu caso. Precisamos de equilíbrio, precisamos nos equilibrar. Um pouco de você em mim, um pouco de mim em você. Seria perfeito. Mas o mundo não é perfeito.

Uma das pessoas que vai e vem nos interrompe: ela precisa mais de você do que você precisa dos meus olhos/ouvidos. Você tem que ir. E vai.

O que você precisa, querida, é mais arte na sua vida.

Monday, February 18, 2008

Inacabado (com um melhor acabamento) - Ficção

Uma cerveja eu conseguiria em qualquer lugar, até num supermercado.
Mas fui no Bar. Local público, cheguei e fui entrando.
Estava mais vazio que de costume. Aliás, eu era o único freguês... não sei dizer se outras pessoas sequer beberam lá.
A lourinha esfregava no chão a ponta de um rodo coberto com um pano encardido. Bonitinha até, não sei se era a mesma da última vez. Depois de tanto tempo, talvez não fosse. Mas ela me chamou pelo nome:
"-[Meu nome]!!! Você, aqui?!? Quanto tempo!!!" - era um clichê, obviamente. Talvez tivesse treinado com seu chefe, o dono do bar, essa recepção calorosa.
Sentei no banquinho alto, rente ao bar, e pedi uma cerveja. Ela me olhava e eu fingia que não via, fitando o balcão. Queria fugir de um possível pedido "me leve pra casa", principalmente porque eu não tinha carro. Mas não era nada disso. A lourinha me passou um papelzinho dobrado no meio, talvez rasgado de um caderno:
"-É seu?"
Não era meu.
Meu silêncio deve ter dito para ela soltar o papel no bar, já que foi o que fez.
O bilhete estava escrito com a minha letra. Uma sequencia de números. Oito números: um telefone, eu acho. Uma sequência de letras: um nome, tenho certeza. O papel não era meu, não lembrava de ter escrito aquilo. Mas a letra era. A curiosidade valia uma ficha telefônica.
Liguei e, ao ser atendido do outro lado, perguntei pelo nome anotado em cima do número. Engraçado: homônimo da minha ex-namorada. Um palíndromo de três letras, cheias de graça. A resposta não teve graça alguma:
"-Ela não quer falar com você."
Desliguei e deixei pra lá. Voltei para o bar atrás de outra cerveja, dobrei o papel novamente e joguei de volta no balcão.
"-Porque aquele bilhete tem minha letra?"
Encarei o papel dobrado durante alguns goles.
Peguei-o novamente. Outra anotação agora estava ali. Outro telefone, outro nome. E a mesma letra. A minha.
Primeiro uma ex-namorada, agora, um ex-amigo. Assuntos inacabados. Aquele pedaço de papel branco com finas linhas azuis, arrancado de um caderno qualquer de segunda, queria me dizer algo.
Liguei para o ex-amigo. Ele também não queria falar comigo. Dobrei o papel novamente. Era hora da terceira cerveja.
O que minha letra me diria agora, se eu voltasse a desdobrar aquele papel jogado no balcão?




PS.1 - Reescrevi, com o intuito (claro) de ficar (e terminar) melhor. O fim ainda está por vir, não se afobe :D . O tempo tá curto, mas prometo terminar. Obrigado pela leitura.
P.S. 2 - Se quiser comparar, o primeiro está 2 posts abaixo. Abraços.
P.S.3 - Quando alguém começa a se reciclar é porque o negócio não tá bom, hein? auheuheuhea
mas né nada disso não... eu só quis melhorar um pouquinho o texto que nem reescrito eu tinha...
valeu seu tempo. Nos vemos no fim dessa saga :Z .

Sunday, November 25, 2007

Inacabado (Ficção)

Uma cerveja eu conseguiria em qualquer lugar. Até num supermercado.
Mas fui no Bar. Local público, cheguei e fui entrando. Estava mais vazio que de costume.
Aliás, eu era o único freguês. Não sei dizer se outras pessoas já beberam lá.
A lourinha limpava o chão com um pano e um rodo. Bonitinha até, não sei dizer se era a mesma de quando eu fui a última vez. Depois de tantos anos, pensei que não fosse. Mas ela me chamou pelo nome:
"-Você, aqui? Quanto tempo!" - era um clichê. Talvez tivesse treinado com o dono a recepção calorosa.
Sentei no banqinho alto, rente ao bar, e peguei minha cerveja. Ela me olhava e eu fingia que não via. Queria fugir de uma possível "carona pra casa", até porque eu não tinha carro. Mas não era nada disso. Me passou um papelzinho dobrado, talvez rasgado de um caderno: "É seu?"
Não era meu.
Mesmo assim, ela soltou no bar. Peguei o papel dobrado. Desdobrei.
Minha letra me dizia alguma coisa. Um monte de números. Um telefone, eu acho. Um nome, tenho certeza.
O papel não era meu, eu não tinha anotado aquilo. Comprei uma ficha no bar e fui ligar.
Perguntei pelo nome anotado em cima do número. Era o mesmo nome da minha ex-namorada. Um anagrama de três letras, duas delas iguais. A resposta não foi calorosa:
"-Ela não quer falar com você."
Ela não queria falar comigo, por isso, desliguei. Dei de ombros e deixei pra lá. Voltei para o bar atrás de outra cerveja, dobrei o papel novamente e joguei de volta no balcão.
"Porque aquela porra tinha minha letra?" - pensei entre um gole e outro na long neck.
Encarei o papel dobrado durante alguns goles.
Peguei-o novamente. Outra anotação agora estava ali. Outro telefone, um nome diferente. Um nome igual a de um ex-amigo.
Primeiro uma ex-namorada, depois, de um ex-amigo. Assuntos inacabados com ambos. Aquele pedaço de papel listrado arrancado de um caderno de segunda queria me dizer algo.
Liguei para o ex-amigo. Ele também não queria falar comigo. Era hora da terceira cerveja.



PS.1 - Termino depois. Obrigado pela leitura.

Thursday, November 08, 2007

De Mal a Mar (Ficção)

O carro hibernava na garagem. O motor quente denunciava o recente retorno. Seria de estranhar que o rapaz entrasse novamente no automóvel, mas era isso que fazia agora. Precisava levá-la a uma pizzaria. Se ela queria, era o suficiente.
Já sabia há muito tempo que estava apaixonado. Teve o prazer da apresentação através de amigos em comum e fez por onde se aproximar dela. Pediu telefone, chamou-a para sair. Estava fácil conquistá-la e o porquê era óbvio. Era pra ser assim.
Já no primeiro encontro o amor do rapaz desabou. Saíram juntos numa noite clara de sábado para encontrar os tais "amigos em comum". Na conversa, secreta aos outros, ela foi direta e afiada, como um bisturi: "Quero ser só sua amiga".
O resto da noite do rapaz foi uma sequência de sorrisos amarelos e risadas desconexas - hora insuficientes, hora exageradas. Tudo a fim de ocultar sua incredulidade na sentença da "garota perfeita". Ela, por sua vez, agia sem o menor desconforto: ria em compasso com os demais, compartilhava as piadas e participava das conversas. Em uma ou duas ocasiões, ainda o abraçara, cúmplice. Estava confuso. Não podia ser; ela só queria conhecê-lo melhor. Devia ser, a amizade, apenas uma desculpa.
Mas cada nova tentativa romântica foi frustrada. Ele mandou mensagens pelo celular e esperou respostas que nunca chegaram. Convites para sair ela aceitava; ao primeiro sinal de declaração, a mesma conversa sobre namoro estragar a amizade se contruía numa barreira entre os dois. Seu prêmio de consolação foi aceitar a amizade. Bastava-lhe estar junto dela.
Assim o rapaz se iludiu. Decerto que a ilusão durou pouco: logo retornaram as mesmas juras de amor eterno. Junto, veio a contrapartida: os discursos sobre a amizade ser inimiga do namoro.
Seus sentimentos, agora maiores e mais intensos, o impediam de fazer qualquer coisa. Nas aulas da faculdade, não se concentrava; em casa, andava pela madrugada do apartamento no escuro total em busca de uma resposta para a rejeição impensável. Não concebia sua devoção e seu amor sincero serem jogados fora como lixo.
Ele não merecia isso. Não ele. Ela precisava entender. Algo precisava ser feito. O amor não era inútil. Não era lixo para ser dispensado. O amor dele era importante.

Era uma dessas madrugadas emotivamente pensativas.
Ela, sem sono e com muita confiança na disponibilidade do amigo, ligou.
O rapaz atendeu, esperançoso. Algo poderia ser diferente agora.

Mas não era. Uma conversa para passar o tempo, para dar sono, a garota deixou claro. Divagou sobre a vida, sobre acontecimentos do dia a dia. Ele ouvia, atentamente; concordava. Afinal, seu amor não era inútil.
Ela mencionou vontade de comer. De comer pizza.

Deu-se o estalo: levaria uma pizza, de presente. Melhor ainda: a levaria para comer uma pizza. Sugeriu e ela adorou.
Dessa vez tudo seria diferente; ele diria de outra forma, a convenceria. Mostaria o que era óbvio: que ambos foram feitos pra ser mais do que amigos. Era tão simples, tão trivial, tão lógico. Ela aceitá-lo, dizer uma palavra, um gesto de aceitação e pronto. Tudo estaria certo. Só isso.
O carro hibernava na garagem. O motor quente denunciava o recente retorno. Seria de estranhar que o rapaz entrasse novamente no automóvel, mas era isso que fazia agora. Precisava levá-la a uma pizzaria.
Chegou no prédio-destino; a garota o esperava já embaixo. Linda, coloria a noite, que até então era pintada em tons sépia pelas velhas lâmpadas dos postes.
Ele mal podia esperar. Dentro do carro, levando-a em direção à pizzaria, disse-lhe (mais uma vez) que a amava. Ela, saturada, o enfrentou: era esse o único motivo de irem à pizzaria? Se fosse, podiam dar meia volta.
Claro que era . E por que seria, então?
Agora ela sabia que a amizade era impossível.
Agora ele sabia que o amor era impossível.

O que fazer? O carro seguia por uma extensa ponte, que ligava uma metade da cidade à outra. Lá embaixo, o escuro do mar poluído.
Seu amor não seria inútil. Algo precisava ser feito. Seu amor não era lixo para ser jogado fora. Ela precisava entender.

Girou a direção, de uma vez. O carro derrapou e, de lado, capotou duas vezes no ar, voando por cima da proteção lateral da ponte. Ao se chocar com a água, abriu uma fenda espumada na escuridão que cobria o mar. O carro, indefeso, afundou.
Ele a fez entender: afogou-a em seus sentimentos poluídos.


P.S. 1: Agradecido.

Wednesday, October 24, 2007

Impressões (Ficção)

Ele:
Tenho que sair com ela de novo. Que gata. Peitões assim, ó. Que bunda maravilhosa. Corpão, corpão. O que ela estuda mesmo?
Rimos demais do cara que caiu quando o ônibus freiou. Que comédia. Como é que alguém não se segura sabendo que o busão freia daquele jeito? Coroa idiota.
Ah, mas ela era maó linda, na vera.Tem umas conversas de menina mesmo, mas fazer o quê? Ainda gosta de quadrinho japonês, diga aí!
Normal, fez vinte anos quase agora. Se bem que eu também tenho 20 anos e nunca nem gostei de mangá. Só de mangar dos outros mesmo. Inclusive dos amigos dela, uns otários.
Que beijo gostoso que a gente deu. Maior tesão. Peguei geral, assim, pegada mesmo, pra ela sentir. Será que na próxima vez eu consigo fazer ela tirar a roupa?


Ela:
Ai, ai, foi demais. Lindo... Inteligente, ele. Faz Direito na federal.
Muito bem humorado. Fora aquela hora do senhor no ônibus, ali não conseguimos mesmo segurar a risada, que maldade. Não era nenhum velho, devia ter uns 40 anos, mas mesmo assim, nada a ver.
Concordamos em tudo. Ele disse que também gosta de mangá. Não conhece Kare Kano, como é que pode? Vou levar uma revista pra ele, na próxima vez...Se tiver próxima vez, né? Ele pareceu gostar, mas esses meninos, parecem que só querem ficar.
Se deu super bem com meus amigos, os que encontramos lá no shopping. Quando eu fui comprar um refrigerante, deixei eles lá conversado, se deram muito bem. De longe eu só via ele rindo...E o beijo? Gente, o que foi aquilo? E a pegada dele, aff! Ainda bem que estávamos no shopping, se a gente tivesse sozinho, ia ser hoje mesmo...


Ps.1: Mangá: Nome mais popular dado aos quadrinhos japoneses. Febre da juventude atual e prova de que nosso futuro é sombrio.

Friday, October 12, 2007

...Do Jeito que as Pessoas Conhecem Pessoas... (Ficção)

A aeromoça o acordara com uma leve carícia no ombro e um sorriso muito amígável, chamando-o de senhor e avisando que o lanche estava sendo servido. Ele, sem entender direito o que se passava, se ajeitou na poltrona e a moça fez um movimento com as mãos que desceu a bandejinha de plástico fixada na poltrona à frente da dele. O suporte deslizou em sua coreografia usual parando na horizontal a centímetros dos joelhos de Felipe. A loura de olhos verdes e sorriso estático colocou um recipiente plástico com um sanduíche envolto em filme tranparente dentro. Ele ía do Rio de Janeiro a Recife, num vôo vespertino sem escalas, e não tinha almoçado antes de embarcar. O sanduíche, embora sem graça (pão integral com uma fatia de queijo coalho crua dentro), parecia uma boa pedida.
_"Para beber, o senhor aceita o quê? "- perguntou a bela aeromoça com sua bela voz de um tom calculado, semelhante às das atendentes de telemarketing.
_"Coca-Cola mesmo." - disse Felipe, pensando na cafeína.
Meneeou a cabeça de lado afim de estalar as juntas do pescoço e deu a primeira mordida. Mastigando, olhou acima de sua poltrona um grupo que conversava animado, todos trajando calças jeans e leves camisas de algodão com uma bela logomarca na frente e diversas propagandas atrás. Agora um gole na lata de Coca, tornou a olhar o grupo, e logo sua atenção foi direcionada para uma garota de rosto branquíssimo e cabelos negros e ondulados que gargalhava despreocupada. Estava sentada de lado no braço de uma poltrona, com os pés descalços no assento da mesma, de maneira visivelmente desleixada e displicente. Dando outra mordida, ele se perguntou se ela não estaria infringindo alguma regra do avião e em quanto tempo a aeromoça iria advertí-la, mas nem a aeromoça apareceu e nem ela sentou corretamente. Apenas gargalhava com seus lábios carnudos e seus dentes perfeitos jogando a cabeça pra trás, quando algum dos outros 4 integrantes do grupo dizia algo. Uns estavam em pé, outros sentados errados em suas poltronas, de modo que formavam um animado círculo que tanto poderia estar ali quanto no meio de uma calçada em qualquer cidade do mundo.
Mas fora ela quem chamara a atenção de Felipe. E continuava chamando enquanto ele terminava a refeição descartável (como tudo em um avião), até que ele resolveu ir ao banheiro. Se levantou e foi andando em direção à animada turma, que se afastou para dar-lhe passagem, e ao mesmo tempo, ela se levantou e foi atrás, como se o seguisse. Fingindo não notar a presença dela andando atrás dele, ele continuou se esqueirando entre as poltronas e parou em frente à porta do banheiro descartável. Notou que estava ocupado e parou. Não agüentou e virou-se. Ela o olhou com desdém, uma leve estudada nele enquanto mastigava o chiclete. E ele a olhava, fascinado.
Não devia ter mais de 25 anos. Olhava para ele e tudo ao redor como se não visse nada de especial. Seus olhos bem pretos, brilhavam como ônix, e corriam todo o cenário tranqüilamente. Seu nariz era pontudo e bem desenhado. Acima da narina esquerda, tinha um piercing pequenininho com um brilhante minúsculo, que facilmente poderia ser confundido com um sinal por um olhar desatento. Seus lábios, além de carnudos, se projetavam para a frente dando a impressao de sua boca ser mais vermelha do que as outras bocas, provavelmente pelo contraste com o branco do rosto. Não usava batom. Sua camisa brança básica da Hering tinha a logomarca que todo o grupo usava, e que agora ele via bem: Intrumentos de percussão como que pintados e abaixo um nome em letras garrafais: Grupo de Percussão Atabaque.
_"Tá gostando do que tá vendo?" - uma voz feminina o tirou dos pensamentos.
Ela o encarava entre o sério e o escárnio, o que o impelia a responder. Felipe se tocara de que, ao ler os dizeres na camisa dela, também olhava em direção aos seus seios.
_"Não, não era isso que eu estava olhando" - tentou se desculpar, sem graça - "eu estava lendo o nome do Grupo que você e seus amigos fazem parte..."
_"É o que todo o mundo diz..." - ela fez uma expressão sarcástica. - "...estou só tirando uma onda com a sua cara. Deve estar com dor de barriga, né?"
_"Hein?" - Felipe balbuciou, rosto incrédulo, sem saber o que dizer.
_"O cara dentro do banheiro, que tá fazendo a gente esperar" - apontou com a cabeça - "faz uma meia hora que está aí. Deve estar com dor de barriga pra demorar tanto" - e riu baixinho.
_"Ah bom..." Felipe disse. "É, deve estar sim... Mas você pode ir quando ele sair, eu não me importo." - tentou ser gentil, sem sucesso.
_"Ah, só pra eu ter que respirar o cheiro do cocô dele todo pra você, né?" - ela disse, e gargalhou uma de suas risadas gostosas. Ele não aguentou e riu também.
_"Não foi bem isso que eu quis dizer... só queria ser legal.. Mas não precisa se não quiser..."
_"E sentir o cheiro do seu, então?" - ambos riram novamente.
Silêncio. Mais silêncio. Constrangedor. Ele começava a pensar no que dizer ou no que perguntar. Ia perguntar o nome dela, quando:
_"Sabe, pela demora dele, acho melhor você ir na frente mesmo" - e riu descontroladamente.
_"Não foi isso que eu quis...."
_"Dizer?" - ela completou - "eu sei seu bobo. Estava apenas tirando..."
_"Uma onda com a minha cara?" - agora era vez dele completar.
Ela sorriu, olhando-o nos olhos, como se procurasse algo:
_"É, exatamente".
O ocupante da cabine sai nessa mesma hora e, ao notar as duas pessoas esperando, olha pra baixo. Ela, baixinho:
_"Olha, o cagão saiu."
Ele não aguenta e cai na gargalhada; ela mantém a cara irônica, com um sorriso simpático estudando a risada dele.
_"Agora a senhorita pode ir" - ele falou em tom solene, como um porteiro de um hotel luxuoso.
_"Pois a senhorita odeia machismo, e como você chegou primeiro, vai primeiro." - sentenciou.
_"Há uma certa diferença entre machismo e gentileza..." ele soltou, baixinho. Ela fez uma expressão indignada pelo desafio:
_"Você daria a vez para um amigo seu que tivesse chegado depois?" - ela inquiriu.
Felipe pensou, olhou-a com cara de vencido e falou:
_"Ok, não daria. Você venceu. Satisfeita?"
_"Não, não estou satisfeita, porque vou ter que segurar o xixi mais um pouco. Mas, é o justo."
_"E qual é o nome da senhorita 'justiceira'?"
_"Lorelai."
_"Tá brincando? Que nem a da Gilmore Girls?" - ele perguntou, incrédulo.
_"Não, que nem a minha avó. Era o nome dela. E se você não for, eu vou" - disse, apontando para o banheiro.
_"Ah, desculpe. Vou sim." Seu tom era resignado...
_"Quando você sair conversamos mais." - ela sorriu.
Ele sorriu e entrou na cabine. Saiu instantes depois, tendo mentalizado exatamente o que diria:
_"Estou sentando naquela poltrona" - e apontou. "Vai lá depois que sair."
Ela riu:
_"Ok, vou sim".
_"E lave as mãos". - Ele levantou a sobrancelha sorrindo, desafiador.
Ela riu.


Felipe estava sentado na sua poltrona, lendo o jornal do dia entregado pela aeromoça loura. Fingiu não a ver sair do banheiro, chegar nos amigos, dizer algo e passar por eles, para sentar-se no assento vazio ao seu lado, de supetão.
_"Quer cheirar pra ver se lavei?" - disse ao se jogar.
_"Eu confio em você" - ele afastou o rosto, com nojo fingido.
_"Não vai se arrepender. Sou muito verdadeira."
_"Não duvido" - ele sorriu. Olhou-a nos olhos. Ela retribuiu por um instante, depois baixou o olhar. Ele começou a pensar que não conhecera ninguém como ela até então, mas teve seus pensamentos cortador por...
_"E você, pelo sotaque, não é de Recife. Tá indo a trabalho, né?" - ela piscou.
_"E você descobriu isso..."
_"Pelo terno. Quem é que viaja de terno, pelo amor de Deus? Tem que ser muito mauricinho" - e gargalhou. Felipe riu junto.
_"Vou te dizer quem viaja vestido assim: quem, ao sair do avião, vai ter um encontro com um cliente muito importante da empresa de contabilidade para o qual ele trabalha." - ele disse com falsa raiva. Ela faz cara de espanto e disse:
_"Mas como é importante ele, meu Deus. Um perfeito executivo." - e riu sarcastimamente. Pelo visto, zoar com ele era um bom passatempo. Era vez dele tentar o truque.
_"Muito bem: você e seus amigos ali estão voltando pra Recife após uma apresentação no Rio, talvez para acompanhar o show do Carlinhos Brown que teve semana passada". Fez uma cara de "que tal?"
_"Acertou e errou. Fizemos uma apresentação, sim, mas o Carlinhos Brown é baiano, e além disso, deve ter quem o acompanhe. Apenas fomos a um encontro de Grupos de todo o Brasil."
_"É, a do Carlinhos Brown eu chutei mizeravelmente mal, só falei porque sei que ele tocou com o Olodum uma vez, no carnaval, não foi? Mas foi uma boa aposta, caso eu tivesse acertado."
_"Um chutasso. Mas foi fora."
Sorriram. A conversa continuou no mesmo pé. Ela falava, ele ria, ele falava, ela ria. Às vezes, riam juntos. Estavam se dando muito bem; ela era boa de papo, ele adorava uma conversa. Mas era mais que isso. Havia uma sintonia, apesar da diferença visivel das vidas que levavam. O comandante do avião pediu a palavra pelo speaker e avisou que em breve aterrisariam no Aeroporto Internacional dos Guararapes.
Se entreolharam ao notar que o tempo passou mais rápido que puderam perceber. A noite brilhava pela janela do avião e logo ele teria um jantar; Ela, iria para o apartamento alugado pago pelo pai que a esperava, sozinho.
Ele não teve dúvidas: beijou-a profundamente na boca. Foi um beijo meio desajeitado, por não ser calculado nem esperado, mas ela não protestou; entregou-se profundamente, suas línguas se enroscaram freneticamente no escondido da boca. Se beijaram e se beijaram, até que o fôlego de Lorelai acabou e deixou Felipe querendo mais. Ela sorriu:
_"É, até que o executivo beija bem..."
_"Eu não sou um executivo. É apenas o que eu faço." - ele disse sério.
Ela fez cara de espanto:

_"Uuuuhhhhh, peguei na ferida!" - e riu uma de suas risadas, deliciosas ao ouvido de Felipe.
_"Onde o senhor executivo vai ficar?"

_"Não sei ainda, vou procurar um hotel. Recomenda algum?"
Ela disse o nome de um hotel que ficava perto (não tão perto assim) do apartamento dela. Ele pediu-lhe seu telefone. Ela deu. Ela perguntou quanto tempo ele iria ficar. Ele respondeu.
E veio o frio na barriga: o avião estava descendo. Logo se separariam. Ela disse:
_"Vou falar ao pessoal que os encontro na parte da bagagem; temos que pegar os intrumentos. A gente desce junto, ok?"
Um minuto depois estavam todos do avião em pé. Ela se encontrava com ele, que a esperava em pé em frente a sua poltrona, com uma maleta 007 na mão. Ela não perderia a oportunidade:
_"Além de tudo, quer ser o James Bond". Os dois riram.
Desceram a escada do avião e ele sentiu pela primeira vez o odor "peculiar" da cidade. Estranhou; ela riu. "Você se acostuma" disse, mas teve a voz abafada pelo som dos aviões na pista. Quando entraram na sala de bagagens, esperaram as malas. A esteira trouxe a dele, que ele pegou. Olhou o relógio: estava em cima da hora, era preciso ir.
_"Tá na minha hora" - falou com seu sotaque carioca. Ela compreendeu.

Se beijaram profundamente. Ele falou:
"_Te ligo."
"_Liga nada" - ela disse, o empurrando em direção à porta. Se virou para a esteira que traria em breve, os instrumentos empacotados de seu grupo. Viu seus amigos de longe e correu em direção a eles, sem olhar pra trás.
Ele assitiu tudo isso enquanto entregava o bilhete da bagagem para ser conferido pelo funcionário do aeroporto. Saiu pela porta, entrou num taxi e foi aos negócios.

Tuesday, August 28, 2007

O Clichê - Parte II (Ficção)

No último capítulo, nosso (anti?) herói saíra determinado a terminar seu relacionamento com a namorada. Após traí-la, viu que não tinha mais lógica em continuar namorando, por ter se apaixonado por outra, e essa outra em especial, ser a melhor amiga da sua atual namorada. Enquanto isso, a amiga traidora (chamada aqui de "Ela") ficara seminua na cama dele, enrolada numa toalha, em um dilema ainda pior: contar ou não a verdade, expondo assim a amiga a um sofrimento duplo ou então, viver uma mentira Será o desfecho desse clichê também um clichê? Não percam o fim dessa comum história.


Ele entrou no carro cabisbaixo, sem comprimentar o porteiro. Um pouco por desatenção, também um pouco por vergonha: o porteiro conhecia sua namorada, e o tinha visto subir com uma estranha algumas horas antes. Girou a ignição e ficou ali ouvindo o ronco do motor, encarando o volante, esperando um milagre. Como não teve milagre algum e nada mudou, acelerou rumo ao destino.
Ela não conseguia parar de pensar como a cama era confortável, ao passo que não perdia o frio na barriga que só aumentava. Pegou o controle da televisão, ligou-a, e zapeou todos os 68 canais da TV a cabo, até que voltou ao primeiro. E continuou assim por mais alguns minutos. Largou o controle e olhou sua roupa jogada na cabeceira, enroscada com a roupa dele, e lembrou-se de uma música do Chico Buarque que relatava algo parecido. O nome da música é Eu Te Amo.
Tentou colocar os sentimentos em ordem, se perguntar o que sentia pra tentar descobrir qual era o certo a fazer. Notou que não queria perder a amiga, notou que não queria perder o amante; logo, notou que não adiantava nada olhar para os próprios sentimentos. E aí, buscou a razão. E descobriu que não tinha razão nenhuma nessa história toda.
Ele entrou no restaurante cauteloso, pedindo licença aos clientes parados na entrada e viu a namorada de longe, sentada numa mesa do fundo. Aqui e ali pessoas conversavam alegremente, mas o som era mudo para ele. Em um instante tudo se focava nela, que sorriu amavelmente, aparentemente de bom humor, como se ele não tivesse "esquecido" o compromisso. E realmente assim ela se portou. Ele a admirou mais ainda por isso.
Para ele, o estranho na traição e na nova paixão era justamente isso: amava, também, a namorada. Não tinha queixas, não tinha reclamações, o sexo era formidável, o humor dela idem. Nada, realmente nada, desabonava essa mulher. E mesmo assim, ele a tinha traído, e mais injustamente, com sua melhor amiga. Sim ele amava a namorada. E sim, ele amava a amiga da namorada. Não tinha solução. Escolhia uma ou outra, e ainda por cima, teria que contar com o perdão da primeira ou ainda a retribuição da segunda.
Ela, ainda deitada na cama e nua, começou a pensar na amiga. Como a amava. Tinham sido companheiras desde a faculdade, confidentes, irmãs. Uma já tinha ajudado a outra em todo tipo de situação, desde amorosas até financeiras, inclusive tinham morado juntas vários anos, sem uma briga sequer. Gostava de bricar dizendo que, se fosse um homem, casaria com a amiga. O remorso pesou mais ainda e ela se perguntou quantas vezes a amiga teria se deitado ali, onde ela agora estava. Quantos orgasmos, quais as posições. E isso, estranhamente, a excitou. Pensar nos dois deixou-a desconcertada,mas de uma maneira agradável; tal pensamento nunca havia passado sequer por sua cabeça.
Ele disse à namorada que precisavam conversar. Ela, lógico, notou em suas feições o fim. Procurava no rosto dele o motivo, que ele disse à queima roupa: Sua melhor amiga. O choque tomou conta da namorada, que ficou fria e incrédula. Ele, explicava, falando rápido, que amava as duas, que não sabia o que fazer. Ele contou que já tinha pensado e que a única opção era ser honesto e dizer a verdade. Mesmo que isso significasse perdê-las. A namorada perguntou pela amiga, ele disse que deixara ela em seu apartamento. Pegou o celular e ligou para ela.
"Fulana, estás ainda no apartamento dele?"
A traidora, vendo que tudo já tinha ido para o beleléu, deu-se por vencida
"Estou"
Pois bem, estamos indo aí, ele e eu, para termos uma conversa, os três.
E assim foi.

Lá chegando, os dois traídores tinham apreensão no rosto. A calma serena da namorada os afetava mais ainda, pois não podiam ler em sua face seus pensamentos. E então a namorada falou, objetiva:
"Bom, o negócio é o seguinte: Vocês me traíram e isso foi muito desleal. De uma vez, vou perder a amiga e o namorado. Amiga, eu te amo, sempre amei e você sabe disso, e o amo também, e ele sempre soube. Quero saber uma coisa: Você o ama?
Prontamente, ela respondeu que sim.
"E a mim?" - continuou a namorada - "e a mim, você ama?"
"Claro que sim, amiga. Como uma irmã."
"E se não fosse como uma irmã, você amaria?"
E essa pergunta acertou os dois traidores como um soco no estômago. Ela estava realmente propondo o que eles entenderam?
A traidora tinha acabado de descobrir, em seus pensamentos, que sim, que se excitava com a amiga e o namorado.
O traidor era homem e, ainda por cima amando as duas, adorou a idéia.
Por fim, a namorada traída, disse:
"Não quero perder as duas pessoas que mais amo no mundo. Ao contrário, acho que assim nos amaremos muito mais".
Para os três parecia a decisão perfeita. Ninguém perderia niguém.
E assim foi. Ali, na mesma hora, deitaram cautelosamente os três. O primeiro beijo triplo foi estranho, mas muito caloroso. O primeiro beijo das duas, separadas dele, foi uma coisa tão óbvia para elas que não sabiam como não tinha acontecido antes. Todos tiraram as roupas e se amaram.
E como em todo clichê, se casaram (os três) e viveram felizes para sempre.

P.S.1 - Gostaram? :B

Thursday, August 09, 2007

O Clichê (Ficção)

Ambos faziam um amor silencioso debaixo das águas daquele chuveiro. Abraçando-a por trás, beijava seu pescoço de uma maneira suavemente agressiva, em pé. Ela, de costas para ele, tinha um prazeiroso e involuntário sorriso no rosto e os olhos fechados. Ele fazia todo o movimento e ela apenas se deixava levar. Abria levemente a boca em compasso com o movimento; não sentia as gotas de respingo, ou mesmo as que escorriam do seu próprio rosto, entrarem-lhe pela boca.
Até que, gradativamente, pararam. Sem dizer palavra, ela foi cautelosamente se desvencilhando do abraço forte, de modo que a contraparte, percebendo, afrouxou mais ainda o enlace até que a soltou de vez. Virando-se de costas para ela, abriu a porta de blindex e pegou uma toalha. Agora ela aproveitava totalmente o chuveiro, com as mãos em forma de concha e ainda os olhos fechados, na direção dos pingos sucessivos, que lhe caíam repetidamente pelo rosto. Dava a impressão de sentir e apreciar cada um deles em separado, como se fossem uma espécie de milagre.

Enrolado na toalha, ele deu dois passos até a pia, abriu uma bolsa, tirou lá de dentro barbeador, creme e pincel de barba. Espremeu a bisnaga, passou displicentemente o conteúdo pelo rosto e molhou o pincel com água. Pois-se a esfregá-lo, em movimentos circulares, pelo rosto, esperando espuma. Através da parede de vidro temperado, olhou para a garota, que ainda estava na mesma exata posição de adoração às águas.
"Ah, meu Deus, ela é linda" - ele pensou, e logo se retratou pelo clichê. Não só o clichê da frase, mas a própria situação era, por si só, um clichê enorme.
"Ela é mais linda do que eu jamais pude imaginar por baixo daquelas roupas" - agora sim se sentia original. Se fosse algum dia escrever aquela passagem, escritor que era, narraria o pensamento dessa forma. Continuou olhando-a enquanto a espuma se formava, espessa, no seu rosto. Assim que a área a ser raspada estava toda branca, lavou o pincel, bateu-o na pia a fim de tirar o excesso de água, e guardou-o. Da mesma bolsa surgiu uma carteira de cigarros e um isqueiro Zippo, que ele usou para acender o cigarro tirado da carteira. Ao fechar o isqueiro (Zippo são aqueles isqueiros de metal com uma tampa que fecha sobre o fogo - outro clichê, pensava), ela saiu do transe com o barulho. Abriu os olhos e olhou para ele; disse quase em silêncio "Papai Noel", por causa da barba branca de espuma, sorrindo. Apesar de não ter ouvido nada, ele sorriu de volta, deu um trago no cigarro e virou-se para o espelho; ela pegava um sabonete para passar pelo corpo. Assoprou a fumaça e começou a raspar o rosto. A cada trago, soltava a fumaça dividida entre nariz e boca, olhando-se no espelho, analizando o resultado, e raspava outra parte da espuma. Ela agora fechava a torneira da água e procurava uma toalha.
Saiu do box e, se secando, foi a primeira a tocar no assunto.
"E agora?" - perguntou.
"Passemos à próxima pergunta" - ele respondeu, irônico. Na verdade, dissera isso por não saber a resposta. Ela não gostou.
"Porque está desperdiçando o tempo dela?" - perguntou, num tom severo.
"Olha quem fala" - ele disse, secamente.
Nenhum dos dois conseguia evitar a felicidade, e exatamente por isso, tentavam culpar um ao outro.
Mesmo com essa quase-briga, ela, enrolada na toalha, se aconchegou nas costas dele. Sentiu seu cheiro e acaricou-o com o rosto; ele não resistiu e, virando, a abraçou. Tinham gostado demais para se odiarem, ou mesmo, se repelirem. Queriam que aquilo continuasse, mesmo sabendo que era errado.
Ele a soltou, virou-se para a pia e jogou água no rosto. Tirou a loção pós-barba, jogou-a no rosto e o arder o fez responder a última pergunta.
"Eu não estou desperdiçando o tempo dela. Posso até estar, mas não planejei nada disso. Ela é 100% amável, e completamente "não-abandonável". Mas você, como amiga, não ajudou muito" - terminou, com pesar no rosto.
"A culpa não é só minha. Não transei sozinha" - ela quase gritou. Ele a abraçou e disse que não foi isso que quis dizer; que para ele era difícil não pensar nela, mesmo desde quando se conheceram.
E clichê tinha sido até como foram apresentados. Ela era uma grande amiga da namorada dele. Tinha sido a confidente do namoro dos dois, por meses a fio, sem conhecê-lo pessoalmente, só de nome. Quando finalmente se conheceram, a empatia fora imediata. O humor dos dois era muito parecido, riram das mesmas piadas, conversaram assuntos em comum, todo o folhetim. Havia sido uma tarde muito agradável. Então, sempre que lembrava dela, ele sucumbia aos pensamentos. Mas a fidelidade, o namoro indo bem, além da proximidade das duas acabar com qualquer chance de se relacionarem, ele tentava esquecer ela. Mas o sentimento de perda já existia.
Até que se encontraram, por acidente, num shopping. Ele tinha ido almoçar e ela também. Estavam com a tarde livre, e ao se avistarem distraidamente, no restaurante japonês, cada qual sozinho, obviamente sentaram juntos. E a conversa se estendeu por toda a tarde, dali pra um café, e a carona oferecida por ele terminou em um beijo inevitável para os dois. Já na despedida se beijaram no rosto, como amigos, mas a aproximação fez os dois esquecerem do mundo e uma boca foi em direção a outra. Foi um beijo lento, quase cauteloso, mas que fez explodir fogos de artifício em volta deles. Ambos se calaram após, ele ligou novamente o carro e foram para o seu apartamento. Entraram se beijando e foram direto para o chuveiro. O resto é história.
E agora, estavam deitados na cama, abraçados e calados. Evitavam falar, como se isso os livrasse de lidar com a situação. Mas, como diz o ditado (clichê): o destino prega peças. O celular dele tocou, e advinha quem era?
"É a sua amiga" - ele simplesmente falou.
"E sua namorada" - ela completou, desnecessariamente sarcástica.
Com pesar, ele atendeu.
"Pô, eu me esqueci" - ele falou para o aparelho. "Já está aí? Está certo, estou indo agora."
Ela, deitada na cama, o olhava sem entender. Ele desligou o celular e virou-se:
"Combinamos de jantar hoje e eu tinha esquecido. Tenho que ir agora".
Ela, incrédula, nâo sabia o que fazer. Ele, notando, foi o primeiro a se manifestar:
"Vou terminar com ela hoje. Não é justo."
"E você vai contar?"
"Não. Ela vai precisar de uma amiga."
"Grande amiga eu sou." - ela olhou para baixo.
"Olha, eu vou contrar que eu me apaixonei por alguém, o que é a completa verdade. Não preciso dizer que foi você. E não vou dizer. Essa parte é sua. E a gente, como vai ficar?" - ele a olhava fixamente.
"Eu te quero, muito. Tô muito apaixonada por você. Mas não sei. Sinceramente, não sei."
E, diante disso, ele foi embora, terminar o namoro. Ela ficou lá, nua, enrolada numa toalha quase molhada, pensando no que fazer.

(Talvez) Continua na semana que vem... :P
Trilha sonora ideal para ler isso: Bebel Gilberto e Sérgio Mendes - Berimbáu - "Quem é homem de bem, não trái o amor que ele quer.."

Sunday, July 08, 2007

O Amor Engorda (Ficção)

O namoro agora durava apenas duas semanas, mas Julia já marcara o encontro de Paulo com sua família. Tinha certeza que elas o adorariam, e era verdade.
Ela tinha sido aquele tipo de garota criada somente por mulheres. A mãe, duas tias e a avó, todas moravam sob o mesmo teto. O pai, falecido logo do nascimento de Julia, havia deixado uma bela herança mais que suficiente para que a única filha pudesse ser criada com tudo de bom e de melhor, estudasse nas escolas mais caras e na faculdade mais conceituada. E nessa faculdade, acabara de conhecer seu novo namorado. E insistia, desde consolidado o namoro:
_Você tem que conhecer a minha família. Todas vão te adorar.
E não é que adoraram mesmo?
Ele era um desses rapazes bem apanhados, sempre bem vestido à moda da época, trabalhava e possuía o próprio carro. Unânime: era um bom partido. Poderia dizer-se disputado, mas gostara de Julia assim que bateram os olhos um no outro. Pois bem, o namoro ia de vento em popa, era natural o convite. Ele aceitou prontamente.
A mãe e as tias se juntaram à opinião vigente entre todas as mulheres que o conheciam:
"_Bom partido!". Só a avó tinha uma ressalva: ele parecia um pouco magro demais.
Logo esse primeiro jantar (assim como todos os seguintes) fora de uma fartura impressionante, mesmo para o número incomum de pessoas na casa. Todas eram, digamos, cheias de corpo, inclusive Julia, mas, Paulo notou, nenhuma comia especialmente muito. Ao contrário, ofereciam muito, que o rapaz aceitava sem jeito. Claro, uma hora ele não agüentava mais, e ainda sem graça, começou a negar a comida, disfarçando o quanto podia, hora fazendo um singelo "não" com a cabeça, hora emendando opiniões (nenhuma polêmica) aos assuntos discutidos à mesa. Opiniões essas, diga-se de passagem, adoradas pelas ouvintes, que se interessavam cada vez mais pelo futuro médico.
Paulo fez sucesso naquela noite, e em todas as seguintes. Passou a freqüentar regularmente a casa da namorada, onde era tratado à pão-de-ló (quase literalmente).
Era sempre recebido com fartos banquetes, os quais as mulheres da casa não o deixavam recusar. Passou a desenvolver técnicas, como por exemplo, a de nunca jantar antes de saber se seria dia de visita à casa "das sogras".
E, seguindo o curso natural das coisas, Paulo começou a engordar.
_Agora sim está corado. - dizia a avó da menina com orgulho.
_É como um homem saudável deve ser. - enchia a boca a tia nº1.
_Viu o bem que fizemos a ele? - dizia a tia nº2.
_É o genro que eu pedi a Deus! - exagerava a mãe da garota.
E, verdade seja dita, o próprio Paulo gostava da adulação. Começou a comer com gosto, ao passo que se acostumava a ser elogiado, bem tratado, sem precisar sequer pedir nada; antes já o ofereciam. E o rapaz engordando...
Chegou a formatura dele. Estavam as cinco (Julia e as mães) tão apaixonadas por ele, que se ofereceram para pagar a festa toda. E foi aquele banquete. Paulo engordava, por baixo, 10 quilos a cada ano. E o amor delas crescia proporcionalmente ao peso do rapaz. Até que a primeira desavença, em todos aqueles anos, veio junto com a frase:
_Quando casarem, vêm os dois morar aqui em casa! - sentenciou a avó, apoiada pelas outras velhas, irredutíveis.
A princípio, Paulo ficou calado. Ponderava, pensava que tudo se resolveria, mas isso o consumia vorazmente, assim como ele comsumia os jantares. "Como pode-se morar com a sogra?" Paulo se perguntava. "E ainda são quatro!"

Depois de alguns dias pensados, tinha certeza: estava fora de cogitação. Mas, amando Julia cegamente, não queria deixá-la. Decidiu, por fim, pedí-la em casamento e, na mesma hora, comunicar que não moraria com as coroas.
E assim foi feito. Os protestos foram instantâneos, primeiro com choro da parte das senhoras, em ordem decrescente de idade - a primeira a chorar foi a avó.
Em seguida, diante da irredutibilidade do noivo, gritos histéricos. Ainda sim, ele não cedeu.
Então elas pensaram, pela primeira vez, na possibilidade de perdê-lo. Não gostaram do pensamento nem um pouco. Se entreolharam e decidiram, caladas: Ele teria que ficar com elas para sempre.
Subitamente, sabiam o que fazer, cada uma a sua parte, como um pacto silencioso. Cercaram Paulo, que não entendia patavinas do que acontecia. E a avó, logo a avó, chegou por trás dele com um rolo de madeira, daqueles de esticar massa, e bateu-lhe na cabeça, com toda a força de uma senhora gorda. Paulo caiu instantaneamente no chão, desmaiado. Julia assistia, calada e inexpressiva.
Levaram ele para a cozinha, desmaiado, e cortaram-lhe primeiro, a cabeça. Jogaram de lado, abriram o peito e tiraram-lhe os órgãos. A avó temperou, refogou e tacou na panela, afim de fazer uma sopa. Enquanto isso, a ex-futura sogra tirava pedaços de carne das partes mais fartas do cadáver de Paulo: fazia bifes dos pedaços menores e os colocava em uma frigideira; os pedaços maiores, arrumava em travessas para assar no forno. Tudo isso temperado pelas tias. Logo viram que era muita carne, e guardaram alguns pedaços na geladeira. Membros e cabeça foram para o lixo.
Foi um jantar calado, nostálgico, mas com a satisfação da certeza de que ele ficaria com elas, dentro delas, para sempre. Jantaram, pela última vez, com Paulo.

Monday, May 28, 2007

Incondicional (Ficção)

_Levanta ou você vai se atrasar pro trabalho - gritou ele de dentro do banheiro - você ainda tem que passar na clínica.
Ísis estava deitada com os olhos abertos, em posição fetal, pensando no que aqueles resultados poderiam revelar. A menstruação atrasada provavelmente indicava um bebê. Não sabia a reação de Pedro caso fosse, então havia feito vários exames para ocultar o de gravidez, que não contara ao marido. Aliás, "marido" era um termo deveras vago, pois não eram casados; moravam juntos havia alguns anos. O relacionamento era visto de fora como perfeito, e também de dentro, por ela, pelo menos. Mantinham a mesma paixão de quando haviam se conhecido, as demonstrações de amor, o carinho, o sexo, tudo desde sempre, perfeito. E ela não queria estragar isso. Trazia dentro de si uma culpa pela menstruação atrasada, mesmo ambos usando preservativos, algo devia ter acontecido. E a culpa era dela.
_Fale alguma coisa - disse Pedro entre um gole de café e outro - está com TPM, é? A brincadeira irônicamente inocente a fez se encolher ainda mais no outro lado da pequena mesa de mármore. Dissimulou um sorriso e um quase inaudível "Claro que não". Se levantou da cadeira, entornou o capuccino em um gole e se mostrou apressada:
_Estou indo. Deixa tudo na pia que na volta eu lavo.
Entrou no carro, acendeu um cigarro. Se perguntou se o fumo faria mal à virtual criança que involuntariamente se formava no útero dela naquele exato momento. Ligou a ignição e mentalizou o caminho da clínica.
Chegou, parou o carro, olhou o relógio: ainda dava tempo. Se amaldiçoou por ser tão pontual - caso tivesse atrasada, poderia adiar a derradeira verdade. Respirou fundo. De resto foi tudo muito rápido. Foi antendida, entregou a requisição, a enfermeira encontrou o exame e passou a ela, que assinou uma guia e voltou ao carro. Acendeu outro cigarro e desenvelopou o papel bem dobrado. O resultado a deixou perplexa.

Faltou o trabalho, ligou dizendo-se doente. Voltou para o pequeno apartamento que dividia com o quase marido, arrumou tudo, sala, cozinha, quarto e, inclusive, suas malas.Rearrumou a vida na sua cabeça, relembrou seus passos até ali, e a resposta era clara. Passou o dia esperando Pedro voltar do trabalho. Na hora de sempre, ele entrou pela porta. Encontrou sua amada inexpressiva no sofá da sala, o fitando com olhos nunca vistos por ele nela antes. Olhos de medo. Sentou-se do lado dela, mudo.
Ela lhe explicou os exames. Contou da menstruação atrasada e do resultado negativo para gravidez. Ele ouvia calado. Tentou interrompê-la uma ou duas vezes, afirmando que nada daquilo acabaria com o que ele sentia por ela, mas Ísis continuava implacável nas explicações:
_Deixa eu terminar, Pedro. Lembra quando brigamos por causa daquela sua ex-namorada? Fiquei com tanto ódio de você ter transado com ela que saí com as meninas, para uma boate, querendo me vingar. Muitas vodkas depois eu estava pronta e me vinguei. Conheci um cara lá, fomos para a casa dele e transamos.
_Eu não me importo, eu só me importo com a gente. Isso é passado...
_Deixa eu terminar, Pedro. - e ele se calou. E ela terminou. - Nunca te contei por saber que você era o homem da minha vida, e eu não queria estragar isso. Mas já tinha estragado e não sabia. Eu transei com ele, e transei sem nenhuma proteção. Acabei esquecendo disso com o tempo, por não dar a mínima importância, mas agora é tarde. Eu tenho AIDS, Pedro. E não posso ter pegado de você, fez esse exame a seis meses.
Agora era ela que não reconhecia os olhos de Pedro. Este encarou o rosto dela, impassível. Olhou os papéis, eram decisivos: HIV POSITIVO, escrito assim, em letras garrafais, em negrito. Foi então que ele suspirou, amassou o papel, levantou-se, jogou-o no lixo, voltou ao sofá, pegou-a pela mão e disse:
_Ísis, eu já falei: o que me importa é a gente. Nós dois. Juntos. E mais nada.
Pedro beijou-a na boca, um beijo longo e molhado, familiar e cúmplice. Pegou-a nos braços e deitou ela cuidadosamente na cama. Tirou-lhe as roupas e fez amor com ela, deixando a camisinha, pela primeira vez em todos aqueles anos, na mesinha da cabeceira.

Tuesday, May 22, 2007

A Safada Princesa Radiante do País Sem-Noção (Ficção)

A Safada Princesa Radiante vivia no país Sem-Noção. Desde cedo, o Rei e a Rainha de Sem-Noção haviam-na ensinado que era a mais bonita e a melhor das criaturas existente no mundo, capaz de fazer e ter tudo o que lhe desse na telha. Ensinaram a ela desde cedo comer bem, gostar de coisas boas e caras (claro, era uma princesa). Nunca a repreendiam em nada de errado que fizesse, a não ser relacionado à etiqueta. Seu pai era um ocupado rei, daqueles que só aparecem para dar presentes, e sua mãe, uma submissa rainha, daquelas que só aparecem pra chamar para o jantar. Sempre tinha tudo o que queria, assim seus pais pregavam que seria certo a uma princesa importante como ela. Presentes brinquedos, roupas; amigos então, nunca faltam às pessoas importantes, não é?
Já saindo da adolescência, ela descobriu o que tanto a inquietava: poderia, dali a diante, escolher um futuro príncipe para seu país (e para ela, claro). Colocava as melhores roupas para ir aos bailes nos luxuosos castelos dos nobres non-senses (nascidos em Sem-Noção eram chamados de non-senses), olhando para todos os lados e descobrindo que a escolha não era tão fácil, principalmente para ela: Não queria só um príncipe.
Como poderia querer só um príncipe se poderia ter mais, se poderia ter tudo? Tudo só para ela? Queria um príncipe e uma princesa. Só para ela.
Logo, nossa Princesa descobriu o prazer ainda na procura. Na primeira noite, um resquício de noção se apoderou dela, dizendo que não poderia escolher os dois na mesma noite. Pegou o rapaz que mais a fascinou, escolheu-o e anunciou como seu namorado oficial. Foi para a cama com ele na mesma noite (a primeira vez de Nossa Alteza), e subiu pelas paredes, descobrindo assim os pazeres carnais que tanto imaginara em suas noites solitárias no palácio real. Mas a idéia de ter também uma princesa não saia-lhe da cabeça. Comentou com o futuro príncipe. Ele, como qualquer nobre, súdito, escravo ou até burguês, adorou a idéia. Saíram agora à caça da futura princesa. Aí, foi mais difícil.
A procura foi tanta - e o sexo com desconhecidas, também - que começaram rumores na sociedade local. Uma notícia maldosa fazia corar e rir: a princesa e o príncipe eram pervertidos sexuais. Estavam à procura de garotas jovens para os atos mais loucos e insanos. Para o espanto de muitos, várias jovens da época se interessaram.
Mas a princesa, logo ela, não conseguia se decidir entre as jovens. A cada noite era uma mais bonita do que a outra, pelas quais ela sentia muito tesão mas nenhum amor, diferente do que sentia pelo príncipe, muito amor mas nenhum tesão. Deu um pé na bunda dele que, indignado por perder toda aquela felicidade e fartura, saiu espalhando boatos ainda mais picantes sobre a nossa futura rainha. Mas a princesa non-sense não perdia a compostura. Danem-se os que diziam, simplesmente queria encontrar o homem e a mulher da sua vida. O problema é que pareciam não existir.
Então, o que já era óbvio para vocês leitores, ela descobriu: o que a princesa gostava mesmo era da sacanagem. Apesar de dizer e acreditar no contrário, acabou por ver que para ela não existia amor sem tesão. Fazer o amor carnal era possuir, era o único momento que acreditava que aquelas pessoas eram realemente dela. Era a forma real de amar. Pelo menos, a única forma que ela conhecia.
O rei e a rainha non-senses morreram sem fazer a mínima idéia de como era a filha. Graças ao puxa-saquismo comum nas côrtes em geral, o reinado da Safada Princesa Radiante seguiu sem problemas, e os boatos ficaram somente para os súditos. Mas foi um reinado solitário. Claro que os bacanais da Safada Princesa Radiante do País Sem-Noção são conhecidos até hoje, mas ela nunca escolheu um príncipe nem uma princesa sequer. Queria tudo e todos, e ironicamente, sozinha acreditava ter conseguido. Possuía todos, como havia sido ensinada que uma princesa merecia. Morreu sozinha no meio de uma suruba (?) e não deixou herdeiros diretos ao trono.

Wednesday, May 09, 2007

Sobrestantivos

Explicaçãozinha: Conversando com a Nê pelo telefone, comentando que eu gostava de fazer Haicais (pequenos poemas tradicionalmente japoneses, compostos de versos 5/7/5 - falarei mais sobre depois), como "passatempo literário", ela me passou um exercício estilístico dado por um professor seu: descrever situações somente usando substantivos. Na hora, adorei a idéia (que minha ignorância não conhecia), e automaticamente ela me sugeriu que fizesse um. Resultado:

Manhã, sol. Feriado, solidão. Garagem, moto. Chave, ignição, motor. Acelerador, barulho. Moto, estrada. Vento, rosto. Capacete, cotovelo. Vento, olhos. Estrada, carros, velocidade. Moto, velocidade, poder. Asfalto, placas, números. Moto. Velocidade velocidade, poder poder. Acostamento, árvores, árvores, árvores... Caminho, cachorro. Desviada, capotagem, queda, asfalto, cabeça, árvore. Morte.

P.S. 1: Será que era isso?

Sunday, May 06, 2007

Eu? Escrever Sobre Relacionamentos?

Fulana amava Beltrano, ele a amava de volta mas nunca a disse isso. Eles eventualmente se separaram. Fulana conheceu Sicrano. Este dizia que a amava, e amava mesmo. Ela o amou de volta. Se casaram, viveram juntos até morrerem.

Fulana amava Beltrano. Ele a amava de volta e dizia isso a ela. Fulana desejava uma mulher, Beltrano não se importava, gostava que ela desejasse uma mulher. Fulana e Beltrano se separaram, não porquê ela desejava uma mulher, mas por um motivo ignorado. Ela continuou a desejar outra mulher e conheceu Sicrana. Sicrana e Fulana tiveram um caso. Sicrana passou a amar Fulana, e disse isso a ela. Mas Fulana não queria o amor de Sicrana. Fulana reencontrou Beltrano em uma festa, ambos bêbados, e acabaram por ficar juntos naquela noite e por mais incontáveis anos.

Beltrano nunca havia tido uma mulher. Imaginava como seria, já tinha chegado perto, mas tê-la fisicamente, nunca. Algumas mulheres já haviam-no amado, mas nenhuma se entregado. Conheceu Fulana. Ela nunca havia tido um homem. Se amaram. Ficaram juntos deveras anos, se casaram e, finalmente, se entregaram mutuamente. Se separaram por motivos que só competem aos dois, e se casaram novamente, ambos com pessoas que já haviam tido muitas outras pessoas.

Beltrano e Fulana se conheceram ainda colegiais. Trocavam cartinhas de amor, ficavam horas no telefone, namoraram por anos a fio até que Fulana engravidou. Beltrano se mudou para os Estados Unidos.

Beltrano e Fulana eram bem casados e conservados, filhos adolescentes bonitos e inteligentes. Ganhavam muito bem, trocavam de carro todo ano, cobertura à beira mar. Realizados profissionalmente, nomes ilustres da sociedade local. Beltrano conheceu uma Sicrana de 22 anos e nunca mais foi visto nas colunas sociais e nem na cobertura à beira mar.

Beltrano e Fulana eram jovens, bonitos e filhos de pais ricos. Criados juntos, se conheciam desde sempre. Primeiro namorados, noivaram sem demora. Casamento marcado. Sicrano cortava a grama no clube frequentado por Beltrano e Fulana nos fins de semana, onde jogavam tênis. Fulana pensou nunca ter visto homem como Sicrano, Sicrano pensou o mesmo sobre Beltrano. Até que ela o olhou uma segunda vez. Acaso do destino, Sicrano olhava justamente para Beltrano. Fulana desistiu de Sicrano, mas existiam outros jardineiros. 10 anos depois, Beltrano pedia o divórcio, ao flagrar Fulana na cama com o jardineiro da casa deles.

P.S. 1: É complicado demais até além da conta.
P.S.2: Me pediram pra escrever sobre relacionamentos. Mas é tão complicado...

Saturday, April 28, 2007

Ela faz tudo, eu não faço nada.

Eu não faço nada, ela faz tudo.
trabalha em dois lugares,
e eu mal estudo.

De cima do salto ela se impõe
Quem vê de baixo só supõe:
O quanto aquela mulher já viveu?
ao que tanto se opõe?

Sua independência só depende dela,
e não da beleza.
Mas não se engane, ela é bela.
Vai além disso,
ultrapassa o óbvio
de um rostinho bonito.
E eu sei que faz de propósito.

Não precisa de ninguém,
não me tem por isso,
e ái de quem pensa que a tem.

Mais que justo o orgulho
do que já conquistou.
"Ninguém me dá nada"
uma vez me falou,
presente de si mesma
na hora me justificou.

De humor tão inteligente
que a risada subseqüente
se torna bruta.

Opiniões tem muitas, mas não demais.
Sei o que ela pensa de mim,
com um leve apreço sente pena:
"um sem-futuro que não vale a pena
nem usa a inteligência que tem,
ri tanto que não leva a sério
a seriedade de ninguém".
Não é bem assim.

Mas que culpa tenho eu,
de só pensar antes de escrever?
Ou de usar minha cabeça assim:
para traduzir em versos erráticos
o que seus sentidos dizem
sobre ela
para mim.

Friday, April 27, 2007

Sicrano (Ficção)

Fulano saía de casa todas as noites. Segunda, ia para um barzinho muito estiloso relativamente perto de sua casa, que ficava numa praia afastada da Cidade Grande. Na terça, voltava ao mesmo barzinho, e muitas vezes com seus amigos, já bêbados, rumavam para uma casa da luz vermelha nos arredores, afim de pechinchar umas mulheres de vida "fácil" a precinhos camaradas.
Na quarta-feira, sempre tinha um show de uma banda desconhecida local, ou vinda da Cidade Grande, em outro bar, esse mais próximo um pouco da Cidade Grande. Na quinta, ia para a casa de uma eventual namorada arrumada na night dos outros dias, e quando não, ia pra "Noite dos Solteiros" na boate Enkontrus, onde sempre "enkontrava" os mesmos amigos dos outros dias e, quem sabe, até uma eventual namorada para visitar na próxima quinta-feira.
Na sexta-feira - ah a sexta-feira - era o grande dia. Todas as pessoas que NÂO saíam nos outros dias podiam ser encontrados em diversos pontos da cidade, todos os já citados e mais alguns, tipo boates e casas de shows. Muitas vezes era reservada para a sexta os shows principais da semana na Cidade Grande, de todos os gêneros musicais. Fulano e seus amigos discutiam tomando umas cervejas em algum posto da cidade e depois seguiam para o local decidido.
Sábado, Fulano acordava completamente ressacado. A cabeça doía, corpo também, a alma mais ainda. Esquecia de algumas coisas da noite anterior, e normalmente não se importava nem um pouco com isso. Se importava era com o que lembrava. Mas isso fica pra depois, porque seu melhor amigo, Beltrano, liga no sábado a tarde, também ressacado, para combinar a noite seguinte. Marcaram no "mesmo posto de gasolina"; de lá, resolveram ir pra um show de uma banda inusitada, que misturava ritmos da cultura local com uma batida mais atual, eletrônica. Encheram a cara, vomitaram, encheram a cara novamente e voltaram completamente bêbados para casa, dirigindo pela estrada.
O domingo começou igualmente ressacado. Cabeça de Galo para a ressaca, almoço da casa da avó com a família, churasco, mais bebida. "Cerveja que é mais leve" ponderou Fulado. Beltrano concordou, entornaram aos gargalos, livraram-se da ressaca. Foi anoitecendo, dormiram no mesmo dia que acordaram, única vez na semana, e já acordaram prontos para outra segunda-feira.



Sunday, April 22, 2007

Meu problema é escrever (Sei que alguém vai pensar isso hehehehhe)

O problema de ser sempre engraçado, é que não te levam a sério quando você fala sério.
O problema de ser sempre sério é que também não te levam a sério, além de rirem de você tanto quanto se fosse sempre engraçado.

O problema de conversar com quem fala muito é um só: ouvir.
O problema de quem fala muito é um só: falar.

O problema de acordar cedo é dormir cedo.
O problema de acordar tarde é que Deus não ajuda.

O problema de se achar é se perder pela boca na maioria das vezes.
O problema de se perder é chegar atrasado.

O problema de não ter conta em banco é não ter cheque especial.
O problema de ter conta em banco é usar o cheque especial.

O problema de não votar é ser acusado de ser o responsável pelo mal estar do país.
O problema de votar é exatamente o mesmo.

O problema de falar rápido problema é acabar dizendo 'pobrema'.
O problema de ouvir 'pobrema' é segurar a gargalhada.

O problema de não ter um bom padrão de vida é lutar todos os dias para tê-lo.
O problema de ter um bom padrão de vida é lutar todos os dias para mantê-lo.

O problema de dormir é acordar.
O problema de não acordar é estar morto. (ou em coma, ou cataléptico; enfim, você entendeu.)


O problema de me ler é ter que me aturar.
O problema de me aturar é acabar me lendo denovo.

O problema de escrever sobre os problemas é que não resolve nenhum problema.
O problema de não escrever sobre os problemas é acabar tendo problemas do mesmo jeito.